quarta-feira, 26 de junho de 2013

Asfixia

        

O ano é 1939, tenho oito anos e não entendo muito bem. Mamãe me disse que de agora em diante precisaremos ficar escondidos, que não poderei fazer barulho e nem brincar na rua. Ela falou sobre um tal de Hitler, ou Füher, não sei direito. Só entendi que ele é um homem mau. Mamãe me disse que ele está perseguindo todos nós, judeus.


Estou triste porque mamãe e papai me tiraram de casa e me obrigaram a deixar todos os meus brinquedos. Minhas lindas bonecas ficaram todas lá. Agora estamos morando em um porão da fábrica de um amigo, um amigo que não é judeu. Pelo que entendi, se o homem mal ou os homens que trabalham pra ele descobrirem que estamos aqui, vão matar a gente. Mas porque eles fazem isso? O que nós fizemos de errado? Eu tenho medo, acho que morrer dói. Quando vovô morreu doeu muito, eu ficava chorando. Não quero morrer.

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Aqui está muito chato, não tenho o que fazer durante o dia, a comida que me dão é muito ruim e mamãe ficou doente. Pelo que ouvi, ela não poderá ir ao médico porque o homem mau pode encontrá-la. Nós não podemos acender a luz, nem abrir a torneira, nada. Papai me disse que se fizermos isso “eles” vão nos descobrir.


Mamãe e papai têm um rádio à pilha e todas as noites ligam baixinho para saber como está o mundo lá fora. Eles não me deixam ouvir, mas ontem à noite eu estava escondida atrás da porta e ouvi quando disseram “estão bombardeando as cidades” e algo sobre “muita destruição”. Acho que as coisas estão muito ruins.

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O tempo está passando muito devagar, mas mamãe me disse que hoje é meu aniversário, o amigo dela trouxe pra mim roupas limpas e uma boneca. Não me importei muito com as roupas, mas adorei a boneca. 


Estou feliz porque mamãe não estava doente. Ainda bem. Meus pais disseram que ela passou mal porque tem um bebê na barriga dela. Eu vou ter um irmãozinho, mas papai e mamãe não ficaram felizes como eu.

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Estou com medo, está muito escuro, só tenho um lampião fraquinho acesso e lá fora está muito barulhento. Mamãe me disse para não ter medo, mas parece que estão destruindo tudo. Eu ouvi papai falando igual o homem do rádio. Algo sobre bombas...
Quero sair daqui, não aguento mais viver presa. Meu irmãozinho também deve estar louco para sair da barriga da mamãe. A barriga dela está enorme. Estou ansiosa para conhecê-lo.

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Ontem foi horrível, vários homens invadiram nosso porão e tiraram a gente de lá com muita violência. Estou com muito medo, eles levaram papai para algum lugar e me trancaram com a mamãe e muitas outras mulheres e crianças. Estão todas muito tristes e sujas. Eles também deixaram todas nós carecas. Este lugar aqui é pior que o nosso porão.


Colocaram a gente em uma fila e nos fizeram andar até uma sala. Estamos todas amontoadas aqui. O lugar é todo fechado. As crianças todas choram de medo, eu também começo a chorar. Olho para mamãe na esperança de que ela me acalme, neste momento um barulho estranho começa e a sala fica cheia de um gás. Tudo vai ficando longe e a última coisa que consigo perceber são as lágrimas nos olhos da minha mãe. Depois tudo escureceu...

domingo, 23 de junho de 2013

Exceto as boas lembranças, no final, tudo que sobra serve apenas para ocupar espaço. Espaço que, se liberado, pode ser ocupado por um novo amigo, uma nova felicidade ou até mesmo um novo amor. Por isso me livro de pesos desnecessários, deixo minha alma desnuda, pronta para receber uma nova vestimenta. Minha'alma se prepara para um novo baile, cujo par é a vida e a dança se desloca pelas estradas do destino.  

segunda-feira, 17 de junho de 2013



Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
(A Hora da Estrela)

Clarice Lispector

terça-feira, 11 de junho de 2013

Apenas um par de asas

Há algum tempo um torpor tomava conta da sua mente. Ela andava há horas, sem saber exatamente para onde iria. Vagou sem rumo pelas ruas enquanto a noite ia tomando conta da cidade. Estava frio, era inverno e a paisagem toda lembrava solidão. O branco da neve tomava conta de todo o caminho. Ela entrou no prédio onde morou alguns anos atrás, mas ao invés de parar no segundo andar, onde ficava seu apartamento, continuou a andar até chegar terraço. Lá de cima ela conseguia ver parte da cidade, uma pequena parte que para ela já parecia ser do tamanho do mundo. A escuridão da noite contrastando com a neve a fazia pensar na escuridão dos seus pensamentos que contrastava com a palidez de sua pele e sua aparente inocência.  Inocência que ela lutou para manter, mas que a vida quis roubar. A fazia pensar na pureza de criança que um dia carregou, e na batalha que travou para tentar fazer isso sobreviver. Batalha, que ao contrário do desejado, a fez crescer. Pensou em toda a dor, todas as lágrimas, todo o sangue derramado, todas as marcas que ficarão para sempre em sua pele e em sua alma. Nada fazia sentido, ela estava cansada. Todos os dias tentava se convencer de que valia a pena continuar. Tentava encontrar a que se prender, mas nada servia. As músicas a faziam chorar, os livros não tinham mais o mesmo valor, a comida não tinha sabor. Ela não tinha mais amigos, pois seu coração era amargo demais para conseguir confiar. Ela deitava e, muitas vezes, não dormia. Quando dormia, seus sonhos era quase piores que a realidade.  Ela sonhava com seus fantasmas. Ela fantasiava sua morte. Às vezes, chagava a desejá-la. Ela acordava e não queria levantar. Cada segundo do dia havia se tornado uma tortura sem fim. 
Andou um pouco e passou por cima da parede de proteção, sentou-se na beirada, com as pernas penduras, olhos fixos no chão. Naquele momento, ela entendeu o que a fez chegar até ali, inconscientemente já havia decidido que não queria mais continuar. Respirou fundo aquele ar gelado. Ficou de pé, abriu os braços e pulou. Um par de asas surgiu de suas costas, ela estava livre. Clarisse voou. 

Na manhã seguinte, lia-se uma manchete de jornal: Garota encontrada morta apos "cair" do terraço de um prédio. Policia investiga se foi assassinato ou suicido. Identidade ainda desconhecida.  Sabe-se apenas que carregava um pingente no formato de um par de asas.