Esta é a tragédia da vida real. Digo isso e me deito de costas na cama. O ângulo está meio torto. Meus cabelos, outrora longos a ponto de encostar no chão, agora ficam pendurados como raízes altas de uma planta qualquer. A gata vem com suas patinhas minúsculas e tenta agarrar alguns fios. Mordê-los. Gatinhos adoram me fazer cafuné. Minha mãe está deitada na cama ao lado. Quando se tem dezenove anos e ainda é dependente dos pais, a vida torana-se uma prisão. O que dirá-se dos quinze, dezesseis. Aonde estais tu, meu amor? Me faço a pegunta cuja a resposta já sei. Pena não ter o poder mudá-la.
Sinto minha inquietação aumentar a cada segundo. Leio um livro e outro, querendo jogá-los longe. Penso em mil coisas, tento encontrar algo que me ocupe, mas minha mente sempre volta ao ponto inicial: ela. Procuro na voz de Cazuza algum consolo; admiro o flautista bêbado; sorrio com o olhar doce do meu gato. Volto para o meu quarto e jogo cadernos antigos no chão. Inquieta, sufocando. Só me resta sentar na cama e sentir um frio-quase-quente enquanto penso em coisas que eu não sei.
Fito pela janela as cores refletidas no muro. Os tons de uma tarde quente que precede os últimos dias do ano. Lembro da cor dos teus olhos. Um cartaz de um filme no cinema dizia: Azul é a cor mais quente. Isso não se aplica a mim. Quente é a cor dos teus olhos quando você brinca me fazendo ter ciúmes. É o frio da tua pele; do teu nervosismo que tornam-se brasas combustível de desejos. Fria é a tua ausência. O abraço gélido da saudade que você deixou aqui.
Através dos óculos vejo as nuvens distantes. Caminho pela casa abraçando meus próprios braços, querendo estar sozinha porque não posso estar ao lado dela. Vejo a mesma rua de tantos anos, vejo nossos passos marcados no chão. Vejo o que mais ninguém verá. Fim de ano e não quero a falsidade de ninguém. Ando por aí com o velho orgulho de antes, calada, alheia. Querendo apenas uma pessoa aqui, tecendo planos mirabolantes, tentando adivinhar um futuro distante. Me deixo desabar. Lembro da presença dela e tenho vontade de ficar por lá, sentada, olhando a outra cadeira vazia. Sinto que nunca estive tão intensa nos últimos anos.
Pendurado no meu pulso, um pedacinho dela. Um pulseira feita por suas próprias mãos. Nos lábios, a falta dos lábios dela. A gata puxa meus cabelos com força me tirando dos meus devaneios. Levanto da cama e vou até a cozinha; coloco um pouco de leite num prato e ponho no chão. A gatinha corre para beber. Boa menina, penso. Ando pela cozinha, abro a geladeira a procura de algo que não quero comer. Examino os armários. Vou até o quintal e vejo o vento soprar balançando as roupas penduradas no varal. Nada disso me importa. Trivialidades do dia a dia. Abro a torneira e molho meu rosto; depois o pescoço e tenho vontade de tomar um banho. Meu corpo arde e tenho certeza que não é culpa do calor.
No celular, duas fotos dela. O desenho que fiz dela; o perfume dela que insisto em sentir e confundir com o meu. Insisto em escrever, linhas tortas, rimas inexistentes, desejos insistentes. A saudade deixando a respiração pesada, um arrepio correndo pelo corpo. Fecho os olhos e não sei mais no que pensar. Apago a luz. Respiro fundo e fico observando minhas mãos iluminadas só pela tela do notebook. Escuto o silêncio, como se isso fosse possível. O sono não vem, a inquietação não cessa. Tiro a roupa e troco-a por outra, simplesmente não sei o que fazer. Escrevo algumas linhas, coisas desconexas. Olho as estrelas e lembro dos beijos. Dos momentos que ficamos juntas; significou tanto, mas foram tão poucas as horas. As horas passam e eu não sei o que fazer, pensar ou sentir. Arrumo minha bagunça e vou dormir. Tentar dormir, pra falar a verdade.
Bebo um copo de suco enquanto espero o notebook iniciar. Agora é noite e depois do banho tomado decido tentar escrever. O computador finalmente liga, o quarto está iluminado apenas pela sua luz. Sigo os passos que me levam a um novo documento do word. "Esta é a tragédia da vida real", escrevo enquanto minha mente se perde passeando pelas vertentes do amor.